A magia das palavras

Sob a carpete, junto à lareira, Matilde libertava a respiração, aquecida pelo calor do brasido tépido da hora. Dezembro chegara com pezinhos de lã. As luzes da árvore de Natal piscavam ao seu lado. Lá fora continuava a sentir-se o burburinho dos carros que se aglomeravam num frenesim apressado. Com os cabelos negros soltos, a caírem sobre os ombros, deixou que os pensamentos fluíssem ao ritmo de cada inspiração quando vislumbrava o tempo que se escapava por entre os dedos, distantes daqueles dias mágicos que esticavam como as pastilhas elásticas.


Inadvertidamente, quando os seus olhos cheios de luz queriam falar no silêncio da noite, descansou a chávena de chá teimosa, esticou o braço para pegar numa caneta e numa folha esquecida em cima da mesa. Precisava de libertar o que a inquietava para lá dos pensamentos. Assim, deixou que a mão deslizasse veloz sobre a folha para que dentro dela coubesse tudo o que o coração já não conseguia guardar.


Querido Pai Natal,

A grande noite vem a caminho, a noite em que te tornas ainda mais extensível na imaginação. Espero que te encontres bem e cheio dessa energia que é tão tua.


Comecei tão empolgada que me esqueci de te dizer que o meu nome é Matilde, a menina dos olhos grandes, aqueles que rimam com a curiosidade que nasceu comigo. Sei que te lembras de mim, de outros Natais. Não fosses tu o Pai Natal, omnipresente, que consegue saber como se portam os meninos de todo o mundo. Continuo a pensar em ti em todos os Natais e assim alimento a minha fantasia que há de, um dia, partir comigo. Que graça teriam os dias sem ela? Sei que me compreendes. Tu e as crianças mantém essa elasticidade extraordinária. A questão é que quando se põe a crescer, essa elasticidade tende a dissipar-se.


Tudo à minha volta ruma no sentido inverso e não sei como mostrar-lhes que por aí não moram os sonhos. Quando aniquilamos a magia nada mais é igual. Talvez muitos queiram esquecer o que lá atrás ficou e, por isso, se imiscuam nos dias atarefados e amorfos. Se parassem um pouco para sentir perceberiam que o amor fica na memória e se guarda no coração, tal como as histórias de outros Natais.


Ainda agora me rio com as histórias que a avó Teresa contava vezes sem conta como se fossem uma ladainha. Conheces bem a curiosidade das crianças. Pois, o meu tio João superava tudo isso. De entre tantas outras que a minha avó contava esta era das mais hilariantes. Narrava ela que, quando ele era criança, estava tão empolgado com a tua chegada que resolveu criar uma armadilha para te apanhar em flagrante e finalmente conhecer-te. Que armadilha é que ele te preparou?


Pegou numa meia grande, cheia de sinos e pendurou-a junto à lareira, esperando que assim que chegasses os sinos o acordassem. Porém, durante a noite, enquanto todos dormiam, o tio João realmente acordou com barulhos estranhos. Levantou-se, em pulgas. Quando chegou à sala encontrou apenas a avó, a correr de um lado para o outro com a meia presa na perna, tentando soltar-se dos sinos. Às escuras, esquecera-se da armadilha, quando, segundo dissera, fora beber um copo de água, e acabou por cair nela. Imaginas as gargalhadas das histórias que se multiplicaram durante anos, até que eu começasse também a senti-las cá dentro como se fossem minhas. Sem lá estar ainda hoje consigo imaginar esta enorme confusão. O susto da avó e a desilusão do tio João! Quiçá por isso deixava-te apenas as bolachinhas porque me preocupava contigo.

Os presentes de corpo e alma. As vozes. Os sabores que as mãos amassam. A cor dos abraços. O amor guardado nos sapatinhos. E isto é o que realmente importa. As pessoas enganam-se quando dizem que há cadeiras vazias a cada passo do tempo. É apenas o olhar que fica cego. Não, não estão vazias, estão cheias de histórias, que se entranham nas paredes, sobem pelas chaminés e propagam os brados e as gargalhadas e se entranham em nós porque nos silêncios sentem-se as coisas boas que o tempo guarda.


Na realidade, o Natal perdeu-se e não encontro mais cada um desses pedacinhos (nem mesmo a fragância do pinheiro de outros tempos). Apesar da intensidade e da quantidade das luzes, nada mais é idêntico e faltam-me as histórias que contagiavam e abraçavam as sombras. Talvez eu seja feita das manhãs que espreitam os primeiros raios de luz e da poesia da noite que embala e dentro de mim more este desassossego dos dias e das noites.


O tempo teve a destreza de fazer com que as pessoas se fossem esquecendo daquilo que tornava esta época genuína e única, apenas com as hipérboles dos sorrisos e das gargalhadas. Elas permanecem nesta capacidade extraordinárias de nos surpreendermos, de nos darmos ao outro, de sermos felizes no momento, de saborearmos a algazarra da chuva no telhado, de rirmos até a barriga não aguentar mais, de saborearmos as palavras que nos contam histórias, que nos devolvem pessoas envoltas em memórias, sorrisos, gestos e ternura.


Sabes, Pai Natal, quando for grande gostava de ser poeta porque os poetas e as crianças conhecem na perfeição os caminhos para sonhar a brincar e brincar a sonhar, noite e dia. Brincar e rimar com imaginar e gargalhar e assim ser presente por inteiro com o Natal cá dentro.


Ah! É mesmo isso! Tive uma ideia estupenda! Lembrei-me de uma história que a minha avó me contava sobre as palavras mágicas que podiam tornar os desejos de Natal realidade! Há uma frase que jamais esquecerei “Se as palavras mágicas saírem do teu coração e as sentires em plenitude na véspera de Natal, o teu desejo realizar-se-á”. Noutros tempos queria a família toda numa noite só para rirmos e brincarmos. Agora vou pedir um desejo com muito carinho, bem lá no fundinho do meu coração, junto da estrela mais cintilante, mas, para que a força dessas palavras seja ainda maior, precisa de ti e das tuas asas para voarem mais alto! Achas que podes lançar algumas palavras mágicas pelo mundo inteiro? Ainda acredito que é possível mudar e resgatar o verdadeiro sentido do Natal e juntos somos mais fortes. Sabes que as palavras podem fazer toda a diferença quando caem no colo de algumas pessoas. Lembro-me de algumas, a quem gosto de chamar verbos-luz, mas certamente poderás acrescentar mais.



Quando chegar o instante de abrires as portas daquela noite mágica, a lua vai ficar acordada até de manhãzinha, das trombetas soará uma melodia celestial nessa luminosa e deslumbrante escuridão em que nasceu o Jesus Menino. Eu permanecerei junto à janela, desperta e vigilante, como a menina de outrora, a observar a estrela mais cintilante.


Acredito que os desejos se cumprem quando os bafejamos de boas energias e, por isso, sei que esta carta vai cair no teu colo antes que a grande noite chegue e se cumpra o maior desejo de Natal. Envio-te o meu abraço apertado e pedacinhos do brilho do meu olhar para guiar estas palavras pelo caminho até ti.


Com carinho,

Matilde


Quando finalmente caiu sobre a folha a última palavra, sentiu-se leve como as plumas que flutuam na brisa e olhou a lua que medrava pela janela silente. Sorriu. Abraçada pelas palavras, muitas palavras que acabara de deixar voar, reclinou-se sobre a almofada caída sob a carpete e fechou os olhos, para degustar o crepitar do tempo.

Elisabete Brito


Uma casa na lua

Olá, convido-te para a minha Casa na Lua!

Elisabete Brito é doutorada em Sociologia, Mestre em Educação e Bibliotecas e licenciada em Literaturas Modernas. Na escrita mora a sua forma de ser, de ler e de estar, entranhada em tudo o que faz. Com as palavras pinta o mundo, costura os sentidos, reinventa os dias e, acima de tudo, brinca. Gosta dos abraços do mar, do charme das flores e dos segredos que guardam as noites estreladas, de andar com a cabeça nas nuvens e dos mistérios cheios de poesia.

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