Esta aventura começou com uma questão nas redes sociais: Acidentalmente abres uma caixa que deveria estar fechada. O que descobres?
De entre as várias respostas, foi selecionada aleatoriamente a resposta da escritora Maria Leonilda Fonseca Pereira - Lá dentro um dedo mindinho e a informação: Alvíssaras a quem encontrar o dono deste dedo, que deu origem este conto escrito a várias mãos. Teve a participação de Cláudia Barata, da sua filha Ana e das escritoras Elisabete Brito, Maria Teresa Portal Oliveira, Maria Clara Almeida Lopes e Maria Gaio. Obrigada a cada uma por entrarem neste desafio e pelo que nasceu dele.
Batia furiosamente na janela, empurrada pelo vento raivoso que silvava, indiferente à escuridão misteriosa que caia dos céus. Carolina tinha acabado de mudar-se para uma antiga casa nos arredores da cidade, e sentia que toda ela estremecia. Duvidava agora da sua opção. Para se abstrair, resolveu explorar o sótão.
- Sobra para mim ter de limpar toda esta tralha… disse, apenas para si.
Perdida entre os seus pensamentos, deparou-se com uma caixa empoeirada e coberta de teias de aranha. Assustou-se no primeiro instante e soltou um grito abafado pelo trovão que lá fora vociferava. Pegou nela. Com esforço, rompeu a tranca e nesse instante sentiu um cheiro nauseabundo. A caixa caiu, no mesmo instante em que o coração disparou. Um dedo mindinho, envolto num pano gasto pelo tempo. Ao lado uma folha de papel amarelecida, com letras hesitantes. Beliscou-se, antes de ler em voz alta a mensagem, para ter a certeza de que estava acordada.
- Alvíssaras a quem encontrar o dono deste dedo.
Um calafrio percorreu a sua espinha. Hum! Parecia dedo de mulher! O prémio não parecia sedutor, mas a curiosidade falava mais alto. Por onde começar? Talvez pelos fundadores da casa e de todos os outros habitantes que se seguiram.
Carolina constatou que no verso do papel havia algumas letras soltas. De imediato percebeu que se tratava de um enigma.
- E agora? O que faço? – murmurou para si, na tentativa de que surgisse uma ideia para decifrar aquele misterioso e empoeirado enigma.
Foi buscar um caderno e um lápis e copiou as letras em várias combinações diferentes. Chegou à conclusão de que era numeração romana.
- É isso, já sei! 1789! Mas agora o que faço com isto?1? - disse Carolina, ainda baralhada com a descoberta.
De repente, lembrou-se de que na casa existia uma enorme biblioteca com inúmeros livros. Aquela biblioteca era um autêntico tesouro de conhecimento, mas quiçá encontraria muito mais do que isso.
Deu por si, mais uma vez, a falar em voz alta - Vou passar pela biblioteca que existe no piso de baixo. Lá encontrarei com certeza em qualquer gaveta ou estante documentos ou livros que atestem quem era, o que fazia e como morreu. A morte de alguém indicar-me-á se houve um crime. Uma pista para chegar àquele dedo.
O trabalho afigurava-se longo e árduo. Decidiu começar a ler. Livros velhos e cheios de pó, papeis amarelecidos. Foi difícil lê-los sem espirrar. Encontraria Carolina alguma resposta entre os livros?
Começou pelas prateleiras mais baixas, mas nada parecia estranho. Eram obras de autores mais ou menos conhecidos. Farta de espirrar, já quase a desistir, lembrou-se da prateleira dos livros proibidos que havia sempre em qualquer casa de idade avançada. Era a mais alta, junto ao teto. Ninguém lhe podia tocar e ai de quem desobedecesse à ordem. Quais seriam as consequências? Carolina era muito curiosa. Receosa de cair, lá subiu a enorme escada, degrau a degrau, com vertigens e o coração a querer sair-lhe pela boca. Receou ter um ataque de asma porque o pó fazia mantas em cima dos calhamaços.
De repente, um com umas letras douradas sobressaiu no meio dos outros. Tinha uma mensagem "Abre-me! 1789". Abriu. Um grito lancinante ouviu-se ao longe.
Ignorou-o. Ao virar uma das folhas, algo absolutamente inesperado caiu de dentro do livro. Era uma fotografia, mas não uma fotografia qualquer. A imagem mostrava claramente uma mulher que se assemelhava assustadoramente a ela própria. Tinha a mesma expressão, o mesmo corte de cabelo e até as roupas, embora antiquadas, lembravam algo que Carolina teria escolhido. No fundo da imagem podia ver-se a casa onde estava agora, mas numa versão muito mais antiga, com um jardim bem cuidado e sem os sinais de abandono que ela conhecia. O seu coração disparou. Como era possível? Aquela mulher era quase uma cópia sua, embora a fotografia fosse de outra época.
Tensa, Carolina continuou a revirar o livro, na esperança de encontrar mais respostas. E então, numa das últimas páginas, encontrou uma folha solta. Não era feita de papel comum, mas sim de um material que não conseguia identificar de imediato. Com algumas dificuldades conseguiu decifrar o que ali estava escrito: O que está perdido no tempo regressa para encontrar o seu fim.
Deixou cair o livro no chão, sentindo-se um pouco perdida sob o peso daquelas palavras. O ar naquele espaço tornou-se mais denso e, de repente, o som distante de passos ecoou pela casa, como se alguém - ou algo - estivesse a aproximar-se lentamente.
O cheiro a mofo e a madeira antiga invadia as suas narinas, à medida que o som dos passos se tornava mais nítido. O coração queria disparar do seu corpo como um cometa.
- Quem está aí? - soltou, num sussurro hesitante. Mas o silêncio cerrado assomou novamente, sem qualquer explicação.
Tentou respirar fundo, apesar de lhe parecer algo difícil, antes que o coração a atraiçoasse com aquele turbilhão de emoções. Era ainda muito jovem. Pegou novamente no livro. Tentou localizar a página onde estivera antes do sobressalto, mas o som dos passos teimava em acompanhar o seu coração, que repercutia o medo que agora a envolvia.
- Tu és mais forte do que ele- murmurou para si.
Ainda com o livro na mão, sentiu uma lufada de ar frio, como se um vulto se aproximasse. Sentiu um possante calafrio a percorrer-lhe o corpo, cada vez mais forte. Questionou-se se deveria sair dali ou enfrentar quem se aproximava. O livro ainda era pesado e as aulas de krav maga de outros tempos iriam ajudar. Tinha de confiar em si.
Os passos pararam. Naquele instante sentiu a sua respiração, ainda acelerada. Vislumbrou uma sombra e abanando a cabeça questionou-se, novamente, se não seria tudo fruto da sua imaginação e estaria apenas a ser invadida pelo cansaço. Porém, uma voz amena e ligeiramente distante soltou:
- Não devias estar aqui.
Apesar das vestes adornadas de ricos bordados e tecidos luxuosos, que refletiam uma posição real e um gosto refinado, a mulher olhava-a curiosamente. Pareciam gémeas.
- Quem gritou? - perguntou Carolina.
- Ninguém desconhecido. Foste tu há 230 anos.
E a outra Carolina pegou na cabeça e pô-la debaixo do braço.
- Quando te decapitaram.
O que se passou a seguir era escuridão. Desmaiou. Perdeu a noção do tempo desde que caiu inanimada no chão. Um silêncio sereno preenchia o vazio da noite. Quando despertou, a mulher tinha desaparecido, assim como a caixa e o dedo. Sentiu uma enorme dor de cabeça e duvidou novamente de si e de tudo o que tinha acontecido até então naquela casa. Ao seu lado um livro desconhecido, porta para uma história cheia de segredos escondidos.
Restou a sensação que aquele assunto voltaria para assombrá-la, deixando-a aprisionada entre a curiosidade e o medo e à mente veio-lhe novamente a frase “O que está perdido no tempo regressa para encontrar o seu fim”. Voltou o calafrio. Sentiu-se vítima de uma história que não era apenas a de um dedo, mas muito mais do que isso preso no tempo e o destino parecia querer cobrar-lhe o preço de ações daquela tetravó decapitada que ela desconhecia.
Elisabete Brito
Uma casa na Lua
Olá, convido-te para a minha Casa na Lua!
Elisabete Brito é doutorada em Sociologia, Mestre em Educação e Bibliotecas e licenciada em Literaturas Modernas. Na escrita mora a sua forma de ser, de ler e de estar, entranhada em tudo o que faz. Com as palavras pinta o mundo, costura os sentidos, reinventa os dias e, acima de tudo, brinca. Gosta dos abraços do mar, do charme das flores e dos segredos que guardam as noites estreladas, de andar com a cabeça nas nuvens e dos mistérios cheios de poesia.
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